Recentemente a Globo abordou o tema DTM, disfunção temporomandibular, no programa Bem Estar. Eu fiquei bastante feliz porque é um tema que realmente precisava da atenção da grande mídia e, particularmente, houveram muitos pontos positivos pois foram quase 30 minutos de assuntos de interesse odontológico, especialmente pelo assunto ser relativo especificamente às disfunções temporomandibulares.
Uma ênfase muito boa foi dada na questão tratamento conservador vs. cirurgia da ATM, priorizando o primeiro em relação ao segundo e alguns cuidados paliativos básicos de interesse para a população, como alongamentos e compressas, foram abordados (Confira o vídeo do programa no final deste post).
Entretanto, nas redes sociais, houve um descontentamento generalizado. Em grupos de profissionais da área, a maior parte das queixas foi em função da mistura de temas, mesclando DTM com cirurgia ortognática e nos grupos de pacientes o desapontamento mesmo foi em relação ao conteúdo. Muitos pacientes portadores de doenças crônicas da ATM e que já passaram por múltiplos tratamentos similares ao mostrado no programa protestaram bastante.
Mas o que acontece? Bom, vejamos o exemplo do primeiro tema abordado que foi “o estalo articular“. Foi dito que é uma condição normal e que não é nenhum problema pelo fato de 40% da população mundial o ter. Inclusive uma internauta foi respondida ao vivo, informada que não havendo dor, o estalo não tem importância. Mas será verdade? Será realmente isso o que a ciência mostra?
Bom, isso não é uma unanimidade na ciência. Eu, pessoalmente, não concordo e convido à analisar à luz da odontologia baseada em evidência científica e também na realidade clínica.
A ideia de que estalos sem dor não representam problemas possui alguns equívocos fundamentais:
- Pressupõe que estalos são todos iguais
- Confunde normal com sadio
- Confunde a ausência da dor com a ausência de doença articular
- Apresenta um viés de interpretação da literatura científica baseado em opinião pessoal ao invés de dados científicos
No vídeo é dito assim: “(..) você estala os dedos, estala outras articulações do corpo, estala também a articulação que está perto da orelha (…)” , mas serão todos iguais?
Recentemente foi publicado na PLOS One, uma conceituada revista de medicina, um trabalho intitulado Real-Time Visualization of Joint Cavitation, onde os autores monitoraram, via ressonância magnética funcional em tempo real, o que acontecia ao estalar as articulações dos dedos. O vídeo, que você pode ver abaixo, se tornou um “viral” na internet!
Agora observe a conclusão dos autores:
” (…) as superfícies opostas resistem à separação até um ponto crítico onde, em seguida, separam-se rapidamente criando cavidades de gás sustentadas que produzem o som do estalo”
Três tipos de estalos da ATM
Agora, os “barulhinhos” da ATM são basicamente de três tipos: Estalos tipo “click”, estalos tipo “pop” e crepitações, sendo que cada um é diferente do outro.
Os estalos tipos cliques estão associados a um movimento abrupto entre o disco articular e o côndilo, já os estalos tipo pop, são aqueles que são produzidos quando o côndilo vai além do limite anatômico ao abrir a boca, passando por uma estrutura chamada de eminência articular abruptamente gerando o som de pop. Por fim, as crepitações são aqueles barulhinhos tipo areia, que indicam a presença de um processo degenerativo.
No vídeo abaixo, produzido pelo Dr. Per-Lennart Westesson em conjunto com o Dr. Lars Eriksson em 1985 na Universidade de Lund, na Suécia, é possível visualizar o instante que ocorrem os estalos tipo”clique” (aos 0,05 e 0,10s ) em uma ATM com deslocamento de disco com redução, isto é, quando o disco retorna à sua posição original de maneira abrupta gerando o estalo.
Em resumo são dois mecanismos COMPLETAMENTE DIFERENTES de produção dos estalos, como mostra a ciência! Em um, o estalo é produzido por uma cavitação repentina oriunda da pressão negativa da separação entre as partes da articulação, enquanto que o outro é pela passagem abruta do côndilo sobre o disco articular deslocado. Mas será que esses estalos da ATM, que são diferentes do resto do corpo, implicam algum problema?
Bom, faz já uma década que se sabe que estalos articulares são dos mais significativos preditores de problemas da ATM futuros. Em um estudo tipo cohort, um dos modelos de investigação de maior relevância na escala de evidência científica, Dr. Magnusson e Dr. Carlsson (duas figuras bem conhecidas no meio da DTM), mostraram em um ACOMPANHAMENTO DE 20 ANOS de pacientes com sinais e sintomas de DTM, que os estalos estavam entre os mais importantes fatores preditivos de DTM!!! O mais interessante é que eles também pensavam que estalos sem dor não tinham importância mas também tiveram que mudar de opinião!!! Veja o trecho abaixo:
“Nós já enfatizamos que os sons da ATM, por si só, não são indicação de tratamento e que poderia ser questionado se o clique sem dor deveria ser visto como um sintoma ou sinal de DTM. No entanto, o clique no início de tratamento foi o único preditor significativo para a presença de outros sintomas da DTM 20 anos mais tarde. E que os estalos após os 20 anos de acompanhamento também se correlacionava com outros sintomas”
Além disso, a ciência já mostrou que discos deslocados estão associados com diversos níveis de processo degenerativo, com assimetrias de face, retrognatismo (“queixo pequeno”) dentre outros problemas! Um estudo publicado no Journal of Maxillofacial Surgery em 2012 avaliou nada menos que 508 articulações com ressonância magnética, comparando as que possuíam o disco articular na posição correta com aquelas em que os mesmos estavam deslocados, e concluiu que as ATM com deslocamento dos discos apresentavam duas vezes mais chances de possuírem degeneração óssea e quase três vezes mais chances de possuírem inflamação (OR 2.01 e 2.89 respectivamente)!!! Pior, as ATM com discos deslocados permanentemente apresentavam quatro vezes mais chances de de possuir degeneração e inflamação!!!
Outro estudo, que acompanhou 62 pacientes com ressonância magnética por quase um ano, descobriu que 70% das ATM que tinham deslocamento de disco com redução no início do acompanhamento pelos pesquisadores se tornaram articulações com discos deslocados permanentemente, com diversos graus de degeneração incluindo perda de altura óssea do côndilo!!!
Normal x Sadio – A mesma coisa?
Mas então, por que essa estória de “40% da população tem, então é normal”? Por causa da confusão entre normal e sadio. Normal é um parâmetro estatístico relacionado à frequência e ao desvio padrão. De maneira bem simplista, se uma coisa for muito comum ela é normal. O problema é quando uma doença é comum demais, como a cárie, por exemplo, ela é “normal”, mas não é sadia… É o caso das doenças da ATM também. Esse é um tema que já abordei aqui no blog antes e pode ser visto aqui: normal vs sadio – cuidado ao se avaliar a ATM.
Tudo começa quando dados estatísticos de estudos epidemiológicos são mal interpretados ou extrapolados erroneamente. No caso dos 40%, a depender da população, o percentual de pessoas acometidas irá variar. Por exemplo, neste estudo aqui feito no Brasil e publicado no Journal of Orofacial Pain, os pesquisadores fizeram uma seleção de uma amostra da população de uma cidade brasileira e encontraram uma prevalência de 23,7% de sons articulares. Portanto, na população desta cidade, os estalos não são nem sadios, nem “normais”
Outra questão é que alguns estudos separam um grupo de pacientes ditos “normais”, ou seja, sem sinais e sintomas de DTM, e ao fazerem uma análise das ATM encontram um percentual elevado de estalos e aí concluem que são achados normais… Em realidade isso é uma interpretação às avessas, por confundir a ausência de sinais e sintomas com a ausência de doença. À luz da evidências científicas expostas acima, a interpretação correta seria de que essas pessoas já possuem sinais de artropatia temporomandibular (ou seja doença da ATM), que pode ou não vir a ter relevância clínica, conforme outros parâmetros que deverão ser levados em consideração. Fenômeno que nos leva ao próximo ponto: confusão entre DTM e Patologia da ATM
Confundir a ausência da dor com a ausência de doença articular é não compreender a diferença entre DTM e patologia da ATM.
Classicamente, DTM é diagnosticada como um conjunto de sinais e sintomas, logo, na ausência destes, o paciente não é considerado portador de DTM, no entanto isso não significa que não haja doença articular (artropatia)! Como qualquer outra doença, há períodos que os sintomas podem desaparecer temporariamente, algumas vezes até se abrandando por longos períodos, mas com a presença de uma artropatia, sempre haverá o risco de desenvolver novos sintomas, como os trabalhos acima mostram. Infelizmente, algumas linhas de abordagem em DTM, quando encontram um paciente com um deslocamento de disco ou mesmo um processo degenerativo sem dor, consideram que aquele paciente não possui nenhum problema, quando na verdade apenas não possui o sintoma DOR*, mas pode ter várias outras implicações!!!
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* Em realidade na maioria das vezes possui sim dor, apenas não necessariamente dor articular (que é o que normalmente o profissional está procurando).
AH, já ia esquecendo… Diferente do que foi dito, o campeão mundial de argolas olímpicas, o Arthur Zanetti, TAMBÉM precisa sim apertar os dentes para buscar a estabilização das cadeias musculares para fazer força… O sorriso é só depois de estabilizar bem a posição. Basta clicar nas fotos que selecionei abaixo e ver o vídeo completo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=BCk3gxPBNpY
Isso acontece porque há muitas relações dinâmicas entre os músculos mandibulares e as cadeias cinéticas do corpo, como mostram vários trabalhos científicos que abordarei em outra postagem.
Como se pode ver as evidências científicas apontam para o entendimento da ATM integrada ao resto do corpo, que pode sofrer com processos patológicos diversos e que um estalo pode significar o início de muitos problemas.
Olá!
Não conheço seu trabalho mas venho parabeniza-lo pela forma como expôs suas opinião sobre o assunto. Foi extremamente clara e objetiva. Pecebe-se seu alto nível de profissionalismo e capacidade. Parabéns! Sucesso!
Olá Janine! Muito obrigado por suas palavras!
Caro Dr. Marcelo
Não podia deixar de postar no seu blog pelo simples fato ter tido o prazer de conhecer toda a sua trajetória profissional mas também ser sua paciente, pois desde que iniciei o tratamento tenho tido outra qualidade de vida. Assisti o programa Bem Estar e o assunto me chamou atenção por estar relacionado ao meu problema. O Dr Guimarães realmente deixou a desejar em termos de maiores explicações para o público, afinal como ele afirma são 40% da população e isso não é possível que não seja nada “apenas um problema social” , mas isso não invalida a sua qualificação como profissional da área. Vale ressaltar que a fonoaudióloga fez colocações mais apropriadas. Penso que a postura como ele conduziu no seu blog foi de falta de amadurecimento emocional frente ao seu próprio mundo científico. Seria muito bom se ao invés de fazer retaliações, se colocando como autoridade, os conhecimentos fossem somados. Assim todos ganhariam inclusive nós pacientes. Parabéns pelas suas colocações.
Obrigado Eva! Você,como sempre, com o dom da palavra!
Marcelo,
Os dados que você apresenta não refletem em nenhum momento os relativos as condutas baseadas em evidências. Em se comparando a sua opinião e as condutas endossadas pelo Instituto Nacional de Saúde dos USA (http://www.nidcr.nih.gov/OralHealth/Topics/TMJ/TMJDisorders.htm), da TMJ organization (http://tmj.org/), vemos que as suas afirmativas são totalmente descabidas e sem nenhuma base científica para tal. Por sinal qual é a sua produção científica na área??????? Antes de acusar alguém produza ciência.
Caro Antonio
Legal você participar aqui do blog.
Curioso é que os dados que eu apresentei foram de estudos publicados em revistas científicas de respeito indexadas na PubMed (a biblioteca do próprio NIH, que você cita), entretanto, ao invés de ser um mero texto orientativo, como o que você postou, foram trabalhos com metodologia apropriada.
Na verdade você cometeu um argumentum ad verecundiam ou simplesmente falácia de apelo a autoridade. Isso é um erro de raciocínio lógico uma vez que se baseia na “força” (no caso, das entidades) e não nas razões que fundamentam sua proposição. É algo que segue a seguinte lógica:
Mas na verdade, P pode ser verdadeiro ou falso, dependendo do argumento.
A entidade NIH é de fato bem crível, mas ó proprio banco de dados dela evidencia justamente o oposto. Em realidade, a pessoa que escreveu o texto, tem exatamente o mesmo viés de interpretação que você: confunde normal com sadio e ignora, convenientemente, as evidências contrárias.
Em realidade eu esperava mais de você, como profissional formador de opinião que é, afinal existem muitas publicações que poderiam (tentar) ajudar seu argumento, inclusive uma revisão sistemática bem famosa com nome bem sugestivo para esse tópico, que eu até pensei que seria logo trazida à tona para subsistência de sua posição… Mas, pelo contrário, você comete mais outra falácia, conhecida como argumentum ad hominem, onde você ataca a minha pessoa, ao invés do meu argumento.
Deixa eu ser bem claro: a minha produção científica é irrelevante para a discussão, pois o que está sendo discutido não é quem possui mais publicações, mas sim se o argumento está bem embasado ou não. Nesse sentido podemos fazer um resumo.
Tema – estalos sem dor e riscos para o paciente
Minha posição:
– Nem todos os estalos da ATM são iguais.
– Alguns estalos podem não representar maiores problemas mas…
– … outros estalos estão associados a lesões articulares que por sua vez estão relacionados a problemas maiores.
– A ausência de dor não é garantia de saúde.
Argumentos apresentados por mim:
– Estudo de caso-controle com ressonância magnética publicado em revista médica revisada por pares
– Estudo anatômico realizado em universidade
– Estudo de cohort publicado em revista científica revisada por pares
– Um estudo longitudinal com ressonância magnética publicado em revista revisada por pares
– Estudo de corte epidemiológico publicado em revista revisada por pares
Sua posição:
– Estalos são todos iguais
– Estalos são normais (usando normal no sentido de sadio)
– Estalos sem dor não importam
– Só importa tratar se houver dor
Seus argumentos:
– Uma falácia de apelo à autoridade
– Uma falácia ad hominem
No entanto, segundo você, eu é que afirmo coisas descabidas e sem base científica…
À propósito, diferente do que você escreveu, não te acusei de nada. Apenas mostrei outro ponto de vista. Lembre-se que este é um país livre e democrático. Você não pode querer impor sua idéia à força, apelando à autoridade quer seja sua ou de outrem, ainda mais quando não apresenta bases científicas para apoiá-la. Aprenda a conviver com as diferenças. Por falar nisso, você entende a diferença entre DTM e patologia da ATM?
Doutor Antonio Sergio, eu fico realmente impressionada com a capacidade que alguns colegas, inclusive os mestres mais renomados no assunto, têm de fugir de discussões que, graças a seus temas interessantes e a opiniões divergentes, seriam de GRANDE VALIA e contribuição para a área da DTM. Quando eu dispunha de mais tempo para acompanhar as discussões no grupo de DTM no Facebook, insistia muito em alimentá-las porque queria conhecer opiniões contrárias à minha atividade diária de consultório e, quem sabe, acrescentar novas práticas à mesma. Em uma ocasião, o que recebi foram ofensas pessoais de um cidadão cirurgião-dentista que não podia aceitar que uma mulher tivesse opinião e argumentos contrários aos seus, e usou de tom machista para encerrar uma discussão que, graças a ele, nunca aconteceu. Segui solicitando evidências científicas que comprovassem a prática clínica dos colegas e, em uma segunda ocasião, uma colega muito mais educada que o primeiro postou um artigo que discutimos produtivamente, mas que culminou na conclusão de que os artigos de DTM que defendem o NÃO-TRATAMENTO como um tipo de tratamento têm muitos vieses de interpretação e falhas de construção, o que torna muito cômodo concluir que nada pode ser feito por estes pacientes.
Assim como o Sr. quando afirma no programa que os estalos são “comuns” e não necessitam tratamento.
Mas então… os colegas renomados do assunto vivem do quê, afinal? Cobram consulta de seus pacientes para dizer que eles não têm nada? Que não precisam de tratamento? Que estão loucos?
Seguindo a mesma linha de busca pelo conhecimento, freqüentei seu curso no ICOT, onde fizestes demonstrações de agulhamento de pontos-gatilho… Eu, portadora de alterações cervicais, após nem-lembro-quantas horas de vôo de POA a Salvador e uma conseqüente contratura no trapézio esquerdo, me ofereci como “cobaia” e saí de lá sem dor alguma no referido músculo… porque a dor que senti na extensão de todo o braço esquerdo, desencadeada pelo agulhamento, foi mais forte e me acompanhou por longos 3 dias de congresso. Ah, e sem nenhum diagnóstico.
Parabéns, Marcelo, pela apresentação. Embora não atue como profissional da Patologia de ATM e sim como DTM, reconheço seu trabalho, respeito e digo que você poderia colocar isso no último congresso da SBDOF. Sua ausência no evento, ainda que você tenha fortes razões para não ir, dificulta a implantação deste modelo de atuação e o debate sobre o mesmo. e ainda abre espaço para comentários que denigrem sua atuação, como houve. Forte abraço, Fernando Falchi
Olá Fernando Falchi, agradeço pelo seu comentário!
Acho legal que observe a diferença entre DTM e patologia da ATM, pois por muito tempo se pensou que era apenas uma diferença de semântica, mas agora as pessoas estão começando a perceber que não é. São duas coisas diferentes mas com áreas de sobreposição entre elas.
Bom, eu não fui ao congresso porque caiu na mesma data da Mini Residência de Patologia da ATM que coordeno e que já estava marcada há muito. Eu não tenho problema nenhum em frequentar os eventos de vocês, inclusive fui para o último evento antes da criação da sociedade de dor orofacial quando a organização foi do comitê de dor orofacial da Sociedade Brasileira de Cefaléia. Foi muito bacana, pude escutar as conferências do Reynaldo, da Juliana, do Tannus e de muitos outros e por fim ainda saímos todos juntos para jantar. Ao meu ver, tem mesmo de ser assim, mantermos um bom relacionamento no âmbito pessoal independente de concordarmos ou não com as idéias e escolas um do outro, até porquê ninguém é dono da verdade e há pontos positivos em ambos os lados.
Entretanto, infelizmente, alguns colegas perdem o próprio tempo criticando algo que verdadeiramente não conhecem. Pior, de maneira não científica, que em realidade denigre mais o próprio autor do comentário. Agora se há interesse em conhecer algo sob o prisma da neurofisiologia e patologia da ATM, basta me convidar à mostrar que o farei de bom grado.
Grande abraço,
Marcelo